Anarquista sírio desafia a visão binária rebeldes/regime da resistência

A seguinte entrevista com Nader Atassi foi publicada no site Truthout, no dia 6 de setembro de 2013. O texto original, em inglês, pode ser encontrado aqui: http://www.truth-out.org/news/item/18617-syrian

Enquanto os EUA intensificam sua pressão para uma intervenção militar na Síria, virtualmente a única narrativa disponível oscila entre o regime brutal de Bashar al-Assad e o papel dos elementos islâmicos dentro da resistência. Além disso, onde há dissenso com a posição dos EUA, boa parte gira em torno da contradição de oferecer suporte às entidades ligadas à Al Qaeda que buscam derrubar o regime, como se elas representassem a única força em oposição à existente ditadura. Mas como escreveu recentemente Jay Cassano para a revista tech Fast Company, a rede democrática e desarmada de resistência ao regime de Assad é rica e variada, representando uma vasta teia de iniciativas políticas locais, coalizões de artistas, organizações de direitos humanos, grupos de não-violência, entre outros. (O Movimento Sírio da Não-violência[1] criou um mapa interativo online[2] para demonstrar essa intricada rede de conexões.)

Enquanto isso, os escritos e contribuições de anarquistas sírios têm sido enormemente influentes em outras lutas árabes, com a tortura até a morte de anarquistas nas prisões de Assad imortalizada nos escritos de palestinos, e em atos por presos políticos palestinos acontecidos em Israel. Dois fatores-chave desse desdobramento exigem grande atenção: a maneira com que os anarquistas no mundo árabe estão fazendo cada vez mais críticas e intervenções que desmentem as contradições usadas como justificativa pela política externa americana, e as conversas em andamento entre movimentos anti-autoritários no mundo árabe que ignoram e se mantêm sem mediação dos pontos de referência do Ocidente. Se a insistência dos anarquistas sírios na auto-determinação como um princípio organizativo central pode suportar a realidade imediata de violência ou a influência dos interesses externos se mantém como uma questão em aberto.

Nader Atassi é um pesquisador político e escritor sírio originalmente de Homs, que mora atualmente entre os Estados Unidos e Beirute. Ele mantém o blog Darth Nader, refletindo sobre eventos da revolução síria. Eu conversei com ele sobre os traços anarquistas da revolução e a possibilidade da intervenção dos EUA.

Joshua Stephens para o Truthout: Anarquistas estiveram tanto participando ativamente quanto escrevendo sobre a revolução síria desde seu começo. Você tem alguma noção de que tipo de atividade estava acontecendo antes? Havia ligações influentes que gerassem uma articulação do anarquismo sírio?

Nader Atassi: Devido à natureza autoritária do regime sírio, sempre houve muito pouco espaço para atuar antes da revolução começar. No entanto, em termos de anarquismo no mundo árabe, muitas das vozes mais proeminentes eram sírias. Apesar de não haver organizações que fossem explicitamente “anarquistas”, escritores e blogs sírios com influências anarquistas estavam se tornando cada vez mais proeminentes na “cena” por volta da última década. Mazen Kamalmaz é um anarquista sírio que escreveu muito durante os últimos anos. Seus escritos contêm muita teoria anarquista aplicada a situações contemporâneas, e ele era uma voz proeminente no anarquismo árabe muito antes das revoltas começarem. Ele escreveu um bocado em árabe, e recentemente deu uma palestra em um café intitulada “O que é o anarquismo?”.

Em termos de organização, no entanto, a situação era diferente. No duro cenário político de um regime autoritário, muitos tiveram que ser criativos e explorar as aberturas que viam para organizar qualquer tipo de movimento, e isso levou a um modo de organização descentralizado de fato. Por exemplo, movimentos de estudantes irromperam nas universidades sírias durante a Segunda Intifada palestina e a Guerra do Iraque. Esse era o tipo de descontentamento popular que o regime tolerava. Marchas foram organizadas para protestar contra a Guerra do Iraque, ou em solidariedade à Intifada palestina. Embora muitos membros da mukhabarat[3] se infiltrassem nesses movimentos e os monitorasse de perto, essas eram irrupções puramente espontâneas por parte dos estudantes. E, embora os estudantes estivessem bem cientes do quanto estavam sendo vigiados de perto (aparentemente, a mukhabarat costumava seguir as marchas com um caderno, anotando os slogans que eram cantados e escritos nas faixas), eles usaram esse pequeno espaço político que recebiam para operar buscando gradualmente tocar em questões domésticas dentro dos protestos permitidos pelo regime, sobre assuntos externos.

Um dos episódios mais audazes que ouvi foi quando estudantes da Aleppo University, em um protesto contra a Guerra do Iraque, levantaram faixas com o slogan “Não à Lei de Emergência” (A Síria está sob a Lei de Emergência desde 1963). Esse tipo de ação não era visto nessa época. Muitos dos estudantes que espontaneamente emergiram desses protestos como organizadores carismáticos antes do levante começaram a desaparecer muito no começo do levante atual. O regime estava atento a essas redes de ativistas que foram criadas como resultado dos movimentos anteriores e então imediatamente reprimiu aqueles ativistas pacíficos que sabia que poderiam ser uma ameaça para ele (e ao mesmo tempo, se tornou mais brando com as redes jihadistas, soltando centenas deles da prisão no fim de 2011). A Aleppo University, como costuma acontecer, tem um movimento muito conhecido de estudantes em favor do levante, tanto que foi cunhada de “Universidade da Revolução”. O regime iria posteriormente mirar na universidade, matando muitos estudantes na Escola de Arquitetura.

Você escreveu recentemente no seu blog sobre a possível intervenção dos EUA como uma espécie de corolário da intervenção russa e iraniana em defesa de Assad, e da intervenção islâmica nos movimentos revolucionários. Assim como aconteceu com o Egito recentemente, anarquistas parecem algo como uma voz signatária contra dois polos insatisfatórios dentro da cobertura hegemônica – uma voz preocupada com auto-determinação. Esse é um entendimento correto?

Sim, eu acredito que é, mas eu também gostaria de clarear algumas coisas. No caso da Síria, há muitos que cabem nessa descrição; não apenas anarquistas, mas trotskistas, marxistas, esquerdistas, e até mesmo alguns liberais. Outra, essa defesa da auto-determinação é baseada na autonomia e descentralização, não em noções wilsonianas de “um povo” com algum tipo de auto-determinação centralizada e nacionalista. Ela é sobre os sírios serem capazes de determinar seus próprios destinos não em um sentido nacionalista, mas no sentido micro-político. Então, por exemplo, a auto-determinação síria não significa um caminho que todos os sírios seguem, mas cada pessoa determinando seu próprio caminho, sem a interferência dos outros. Então os curdos sírios, por exemplo, também têm o direito à completa auto-determinação nessa concepção, ao invés de forçá-los dentro de uma identidade síria arbitrária e dizer que todas as pessoas que estão dentro dessa identidade possuem um mesmo destino.

E quando falamos sobre partidos, como o regime, mas também seus aliados externos, e os jihadistas que estão contra a auto-determinação síria – isso não é porque existe uma única narrativa da auto-determinação síria e os jihadistas são contra. Na verdade, eles querem impôr sua própria narrativa sobre todo mundo. O regime trabalha e sempre trabalhou contra a auto-determinação síria porque mantém todo o poder político e se nega a compartilhá-lo. Os islâmicos trabalham contra a auto-determinação síria não porque são islâmicos (que é o motivo de muitos liberais se oporem a eles), mas porque eles têm uma visão de como a sociedade deveria funcionar, e querem impôr isso à força aos outros, com ou sem o consentimento das pessoas. Isso também é contra a auto-determinação síria. Os aliados do regime de Assad, Irã, Rússia e várias milícias estrangeiras, são contra a auto-determinação síria porque eles estão determinados a sustentar esse regime devido ao fato de que eles decidiram que seus interesses geopolíticos passam por cima dos sírios decidirem seu destino por si mesmos.

Então sim, a cobertura hegemônica sempre tenta representar as pessoas como pertencendo a algum tipo de binário. Mas a revolução síria irrompeu com as pessoas reivindicando auto-determinação do partido que estava realmente negando isso a elas: o regime de Bashar al-Assad. Com o passar do tempo, outros atores entram em cena que também negam aos sírios sua auto-determinação, mesmo alguns que lutaram contra o regime. Mas a posição nunca foi apenas ser contra o regime por ser contra o regime, assim como eu presumo que no Egito, a posição de nossos camaradas não é ser contra a Irmandade Muçulmana só por ser contra a Irmandade. O regime tirou a auto-determinação das pessoas, e qualquer remoção do regime que resulte em trocá-lo por outro que irá dominar os sírios não deveria ser vista como um sucesso. Como no Egito, quando a Irmandade tomou o poder, aqueles que os consideravam uma ameaça à revolução, mesmo se não fossem felool [apoiadores de Mubarak], ficaram repetindo o slogan “al thawra mustamera” [“a revolução continua”]. O mesmo vai acontecer na Síria se, depois que o regime se for, tome poder um partido que também nega aos sírios seu direito de determinar seu próprio destino.

Quando eu entrevistei Mohammed Bamyeh esse ano, ele falou da Síria como um exemplo muito interessante do anarquismo funcionando como uma metodologia na base. Ele apontou que quando se ouve sobre organização dentro da revolução síria, se ouve sobre comitês e formas que são consideravelmente horizontais e autônomas. Sua sugestão parece corroborada pelo que tem sido trazido à luz por pessoas como Budour Hassan, que documentou a vida e trabalho de Omar Aziz. Você vê essa influência no que seus camaradas estão fazendo e relatando?

Sim, isso nos remete a como o anarquismo deveria ser visto como um conjunto de práticas ao invés de uma ideologia. Muito da organização dentro do levante sírio teve uma abordagem anarquista, mesmo que não explicitamente. Há o trabalho para o qual o mártir Omar Aziz contribuiu, para a emergência de conselhos locais, que Tahrir-ICN e Budour Hassan documentaram muito bem. Essencialmente, esses conselhos foram concebidos por Aziz como organizações onde o auto-governo e a ajuda mútua pudessem florescer. Eu acredito que a visão de Omar deu vida ao modo como os conselhos locais operam, embora seja digno de nota que os conselhos abandonaram o auto-governo, optando por se focar em esforços de mídia e auxílio. Mas eles ainda operam baseados em princípios de ajuda mútua, cooperação e consenso.

A cidade de Yabroud, entre Damasco e Homs, é a comuna do levante sírio. Também um modelo de coexistência sectária, com uma grande população cristã vivendo na cidade, Yabroud se tornou um modelo de autonomia e auto-governo na Síria. Após as forças de segurança do regime terem deixado Yabroud por ordem de Assad para se concentrar em outro lugar, moradores interviram para preencher o vácuo, declarando “nós agora estamos organizando todos os aspectos da vida da cidade por nós mesmos [sic]”. Desde decorar a cidade até renomear a escola de “Escola da Liberdade”, Yabroud é certamente o que muitos sírios, incluindo eu, esperam que a vida se pareça após Assad. Outras áreas controladas por jihadistas reacionários desenham um cenário potencialmente mais sinistro do futuro, mas mesmo assim, é importante reconhecer que há alternativas. Existe também uma rede radical de ativistas localizados por todo o país, mas principalmente em Damasco, chamada “Juventude Revolucionária Síria”[4]. Eles são uma organização secreta, e fazem protestos extremamente ousados, muitas vezes no centro da Damasco controlada pelo regime, usando máscaras e carregando faixas e bandeiras da revolução síria – muitas vezes acompanhadas por bandeiras curdas (outro tabu na Síria).

Na cidade de Darayya, no subúrbio de Damasco, onde o regime tem encampado uma perversa batalha desde que ela caiu nas mãos dos rebeldes em novembro de 2012, alguns moradores decidiram se juntar e criar um jornal no meio de toda a guerra, chamado Enab Baladi (significa Uvas Locais, já que Darayya é famosa por suas uvas). Seu jornal é focado tanto no que acontece localmente em Darayya quanto no que acontece no resto da Síria. É impresso e distribuído gratuitamente por toda a cidade. [Os] princípios [de] auto-governo, autonomia, ajuda mútua e cooperação estão presentes em muitas das organizações dentro do levante. As organizações que operam de acordo com esses princípios obviamente não compõem a totalidade do levante. Há elementos reacionários, elementos sectários, elementos imperialistas. Mas nós ouvimos falar muito sobre isso, não é? Tem pessoas fazendo um grande trabalho baseado em sólidos princípios que merecem nosso apoio.

Como você acha que a intervenção dos EUA iria afetar o processo ou a dinâmica da revolução?

Eu acho que, em geral, intervenções têm afetado o levante muito negativamente, e acho que a intervenção dos EUA não será diferente. Mas eu acho que como essa intervenção específica vai afetar o processo ou dinâmica da revolução depende do escopo específico dos ataques americanos. Se os EUA atacarem da forma que estão dizendo que vão, isto é, ataques “punitivos”, “limitados”, “cirúrgicos”, “simbólicos”, então isso não vai surtir nenhuma mudança significativa no campo de batalha. Porém, isso pode dar ao regime de Assad uma vitória de propaganda, já que então poderá alegar que “se manteve firme contra o imperialismo dos EUA”. Ditadores que sobreviveram a guerras têm uma tendência a declarar vitórias baseados em mera sobrevivência, mesmo se na realidade eles estivessem no lado perdedor. Depois que Saddam Hussein foi retirado do Kuwait por EUA, Arábia Saudita e outros, ele se manteve no poder por mais 12 anos, doze anos que foram repletos de propaganda sobre como Saddam se manteve firme durante “a mãe de todas as batalhas”.

Se os ataques acabarem sendo mais duros do que está sendo discutido nesse momento, por qualquer razão, e eles produzirem uma mudança significativa no campo de batalha, ou enfraquecerem significativamente o regime de Assad, então acho que os potenciais efeitos negativos serão diferentes. Eu acho que isso vai levar a um futuro onde os sírios não têm voz para decidir. Os EUA podem não gostar de Assad, mas eles exprimiram muitas vezes que acreditam que as instituições do regime devem ser mantidas intactas para garantir estabilidade numa futura Síria. Resumindo, como muitos apontaram, os EUA querem “Assadismo sem Assad”. Eles querem o regime sem a figura de Assad, do mesmo modo que eles conseguiram no Egito, quando Mubarak saiu mas o “núcleo duro” dos militares permaneceu, e assim como aconteceu no Yêmen, onde os EUA negociaram para o presidente sair mas tudo se manter predominantemente igual. O problema com isso é que os sírios cantaram “O povo exige a derrubada do regime”, não só de Assad. Existe um consenso geral, dos EUA à Rússia ao Irã, de que não importa o que acontecer na Síria, as instituições do regime devem permanecer intactas. As mesmas instituições que foram construídas pela ditadura. As mesmas instituições que pilharam a Síria e provocaram o descontentamento popular que começou esse levante. As mesmas instituições que são meramente os resquícios do colonialismo francês. Todos na Síria sabem que os candidatos preferidos pelos EUA para os cargos de liderança na Síria são aqueles sírios que fizeram parte do regime e então desertaram: burocratas ba’athistas que viraram tecnocratas neoliberais que viraram “desertores”. Essas são as pessoas que os EUA colocariam para governar a Síria.

Os sírios já sacrificaram tanta coisa. Eles pagaram o preço mais alto por suas demandas. Eu não quero que tudo isso sirva pra nada. No afã de se livrar de Assad, o símbolo do regime, eu espero que o regime não seja preservado. A Síria merece mais do que um monte de instituições desprezíveis e uma burocracia criada por ditadores que queriam manter o povo sírio sob controle e pacificado. Não deveria haver razões para preservar instituições que participaram na pilhagem do país e na matança de pessoas. E sabendo que é isso que os EUA desejam para a Síria, eu rejeito qualquer envolvimento direto americano. Se os EUA querem ajudar, podem começar usando diplomacia para falar com a Rússia e Irã e convencê-los a parar a guerra, para que os próprios sírios possam determinar qual a próxima ação a se tomar. Mas a intervenção direta dos EUA significa estrangeiros determinando o próximo estágio para os sírios, algo que eu acredito que deve ser rejeitado.

O que as pessoas fora da Síria podem fazer para oferecer apoio?

Para pessoas de fora, é difícil. Em termos de suporte material, há muito pouco que possa ser feito. A única coisa que eu penso que é possível em larga escala é suporte discursivo/intelectual. A esquerda tem sido muito hostil com o levante sírio, tratando os piores elementos da atividade anti-regime como se fossem os únicos elementos, e aceitando as narrativas do regime sem questionar. O que eu pediria para as pessoas fazerem é ajudar a corrigir essa história e mostrar que existem elementos do levante sírio que valem a pena apoiar. Ajudar a quebrar esse binário prejudicial de que a decisão é entre Assad ou a Al Qaeda, ou Assad e o imperialismo dos EUA. Ser justo com a história e os sacrifícios do povo sírio através de um relato acurado. Talvez seja tarde demais, e as narrativas hegemônicas sejam poderosas demais nesse momento para serem superadas. Mas se as pessoas começarem agora, talvez os livros de história possam pelo menos ser justos.

[1] “Syrian Nonviolence Movement”, no original em inglês.

[2] Os links da matéria original foram mantidos, sem tradução.

[3] Mukhabarat é um termo árabe para os serviços de inteligência.

[4] “Syrian  Revolutionary Youth”, no original em inglês.

Tradução: JG